quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Lisboa




Em Lisboa  é apenas preciso acordar e abrir a porta.
A cidade dá o resto.
Em Lisboa não são preciso relógios nem mapas
Pois cada esquina tem um presente
Cada boca uma conversa
Cada hora uma surpresa
Assim, não é preciso nada mais
Que aceitar
O sol que nos bate nas costas
E os convites do aleatório - a vida que é - senão aleatória?
Em Lisboa apenas é preciso
Abrir a porta a dizer sim
Comer as cores
Perder o tempo
Olhar os azulejos
Como dois namorados 
vagueando
Em primeiros beijos.

Bélgica



A Bélgica é um país onde todos os comboios vão dar a ti. Vejo as tabelas de horários, os nomes das paragens. Sempre quatro letras. Destino a ti em quarenta minutos. Destino a ti com troca em Bruxelles-midi. Destino a ti via Charleroi. Mesmo a partida tem o teu nome no final. A partida vem com um bilhete pré comprado na memória para... "Pré reserva para o próximo mês". Dia 23? Pode ser. Desta vez o guichet é um calendário imaginado, e a compra um dia marcado. A Bélgica são jardins rectangulares espreitados através de janelas de comboio. É o verde húmido, o tijolo antigo, o nevoeiro abatido, o branco cortante, o negro dos carris e dos telhados. Quem pintou a Bélgica deve ter perdido algumas cores pelo caminho. Deve ter deixado cair o rosa, o amarelo, o lilás. O azul deve estar a terminar, é usado com cautela, para os dias de Verão. A Bélgica podia ser habitada por pessoas antigas e barrigudas de calças enfoladas e penachos no chapéus. A Bélgica podia ser habitada por freiras silenciosas e mães saudosas bordando toalhas à lareira. Não estranharia, nas suas mil vilas replicando a receita: uma torre, uma praça; um city hall, uma béguinage. Na Bélgica tudo tem centenas de anos. Podemos consultar as fachadas para mais informação: remeter para o século XVI, saber o que se fazia. Ali um talho, além um curtidor, mais além um joalheiro. Os segredos subsistem, permanecem nos actos. As pedras ditam os hábitos. É que ainda hoje se bebe a mesma cerveja, receita repetida por monges há mil anos, se se resguarda pelas mesmas paredes, se pisa o mesmo chão, ainda hoje se fala de arte, se cria música, se partilham confidências. Ainda hoje a gente e as palavras, mas agora renovadas, mas agora renascidas, a uma nova luz, com um novo sangue.
Mas quem sou eu para falar da Bélgica, senão a voz de quem sucumbiu aos seus encantos? Eu ainda não sei os nomes de todos os reis, eu ainda não sei todas as lendas e as formas dos territórios, desde o império do Carlos Magno às fronteiras desenhadas pelas bocas. Quem sou eu para falar da Bélgica senão alguém que foi aqui diferentes pessoas? A Bélgica foi o princípio e o fim de tanto, de mim como me conheço, do resto do mundo, da fome da descoberta, porta aberta. A Bélgica foi sempre um lado de mim aqui desenterrado, foi sempre encontros ansiados, foi sempre ponto de reencontro, de cruzamento.
Hoje os comboios dão todos a ti. Não porque tu és a Bélgica. Mas sim porque tu és a parte de mim que a Bélgica fez nascer. E que bom regressar a esta casa, e aqui permanecer.


Ao som de: Minta - right boulevards