segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O rio



O rio surge quando não se espera, como parágrafos de paz entre ruínas, surge como um fantasma, como uma neblina, como o um murmúrio, um Rio Branco sem corrente, um rio que repousa, um rio que permanece. E enquanto aqui em cima os sapatos bicudos batem nas pedras, os carris desgastados chiam sob o peso dos elétricos e dos passageiros que os sobrelotam, enquanto os desgraçados gritam pelas ruas e os chamamos loucos, enquanto os estrondos sineiros cortam o céu como machados o rio só, visto das janelas e das esquinas das paredes velhas, rasgadas por pombos sujos, os camiões peganhentos, os sacos rasgados e o rio ileso a tudo, evaporando-se, o rio espelho, rosado, o rio eterno. Antes dos homens, depois dos homens. Depois de todas as tempestades e todas as palavras, permanece, debaixo de tudo o que se desmorona, para replicar, desta cidade, somente a ondulação das roupas nos estendais.


Morar aqui



Aqui a vida cobre-me como um manto, um manto de serenidade, a mesma de quem acorda num domingo e decide não tirar o pijama. A cidade mansa amansa-me, desaparece o cansaço, adormecem problemas e inquietudes, e esta Lisboa não é mais para mim do que sossego. Ando pelas ruas e todas as portas estão abertas, todas as casas têm um rosto, e posso o entrar e perguntar quem é e ali morar um pouco. Moro assim na cidade inteira, moro na travessa do Jordão, moro na Calçada de Santana, moro no claustro da faculdade que já foi mosteiro, e que corre o risco de desabar sobre a cisterna. Moro um pouco nas finanças, onde trabalha uma senhora que também se chama Lígia, moro na casa da minha vizinha de baixo cujo pai é pintor e que antes de residir neste t1 de 35 metros quadrados, vivia numa casa de seis assoalhadas em Algés, mas que eu não me preocupe que vou gostar de estar aqui, moro na casa onde nunca entrei da minha vizinha da frente cheia de gatos mas não dona de nenhum, que fala com eles mais que com as pessoas, que vai todos os dias comer a sua sopa, que custa um euro, no café lá em baixo na mouraria, e o melhor dia é o de sopa de peixe, moro nas escadas da travessa, mesmo aqui nesta rua a cheirar a excremento de cão e febras assadas, com fado gasto ou o Júlio Inglesias a sair sempre da mesma janela, moro no anos 60 que é de um galego e diz que já foi um bordel mas agora está à pinha de uma multidão eclética e suada ao sabor do samba, da morna e do tabaco. E é esta a Lisboa que se repete todos os dias a pé, que se respira sem pressa e com a eternidade de já fazer parte da minha carne, do meu sangue, do meu corpo inteiro.

Ao som de: Sopa da pedra - Ó minha amora madura

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

últimos dias. "Último? Não digas último!". Mas como não se todos os dias são últimos, se todos os minutos são últimos?




"Em cada noite morro, em cada, dia renasço."

E chega a hora do fim da data acordada. O tempo das listas do que não se fez, o museu de arte aplicada que foi desenhado por Odon Lechner, o cemitério, os banhos de Margaret, as praias escondidas das margens do Danúbio, o restaurante onde não chegámos a ir, o camping prometido em Kisorosi e uma noite de guitarras e banhos nocturnos em Palatinus, que combinámos com tanta gente, as aulas de guitarra que ficam a meio, as gravações na casa do António, os sabores de gelado caseiro que ainda não provámos, a comida no congelador que é para acabar, os concertos que ficaram por ver, as listas de nomes com quem temos de combinar café. E é assim o fim das coisas, listas e listas de lugares e pessoas maravilhosas a quem queremos agradecer.

E é isto que é viciante em viver fora, este encher e esvaziar malas, estas vidas em parágrafo, estes fins que não são mais que mortes. Viver fora é colocar muitos pontos finais, é morrer várias vezes, morrer com alegria e com saúde, morrer com a alma cheia de sorrisos. O fim: esse sabor fantástico que têm os pôr-do-sol e as últimas colheres de gelado. Viver fora é ser viciado em despedidas, em abraços nos aeroportos, em tirar fotografias. Viver fora é celebrar onde se está, celebrar hoje porque amanhã não dá, e a vida deve ser assim todos os dias, mas é fácil esquecer quando não há estações nem calendários nem bilhetes de partida. 

É assim que se vivem os últimos dias. "Último? Não digas último!". Mas como não se todos os dias são últimos, se todos os minutos são últimos? É isso que me acorda, é isso que me faz
Viver
Fazer
Urgentemente.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Intermitências



A descoberta é saber que gosto das intermitências. A vida cheia de capítulos e pontos e vírgulas.

Ir e voltar, partir e regressar.

Fala-se em emigrar, pois eu falo em viagens, fala-se em decisões pois eu falo em experiências, nada é eterno, é preciso partir e dormir bem longe para saber o tamanho da nossa cama. Foi preciso deixar para construir pontes. Foi o som do alaúde que me mostrou a amarantina, foram os altos pés direitos que me pediram baixas janelas. Nunca entendi como a minha terra era tão rasa, foi preciso ver o sol deixar de brilhar em Bruxelas e a noite eterna dos nórdicos para me lembrar como em lado nenhum o sol brilha como ali, como um manto de luz e brancos muros. Foi preciso provar peixe em muitas praças para descobrir que nada existe como o mercado ao lado da casa dos meus avós. Sou capaz de nomear mais de 15 variedades de bivalves, mais de 30 espécies de peixe, mais de 10 tipos de crustáceos. Pensava que todos sabiam. Foi assim que todas as coisas vulgares se tornaram únicas e preciosas. Foi assim que todas as coisas garantidas se tornaram frágeis. As manhãs a apanhar caranguejos com os meus pais. Os meus avós acenando à janela. O sabor das laranjas colhidas ao sul e dos figos roubados aos cactos.

A descoberta é saber que quero as intermitências. É na ausência que a verdade se revela. Una e singela, uma imagem.

Uma imagem repetida todas as noites:

A minha: uma casa clara, um pinheiro, o cheiro do lodo.

 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A sério


Porto palafítico, Carrasqueira


Poucas horas depois de aterrados já nos tínhamos metido no carro rumo a sul. Foi ao passar pelos arrozais que a minha irmã comentou: "Sabem o que é, aqui é a vida a sério, com os problemas, com as chatices, com o trabalho". E é verdade e dou por mim pensando o que será que me faz levar tão a sério esta aqui, e a tirar-lhe o peso quando vivida em outra língua. Talvez aqui cresçamos com demasiadas referências do que deve ser, dos nossos modelos pai mãe amigos cantigas, e aceitemos-nos só quando não entendemos os cartazes.  É preciso retirar a forma para que o molde nasça, e olhar ao longe para entender a paisagem. Talvez seja essa lição que trago no bolso ao regressar. O olhar leve, aprender a brincar. Que o caminho é sempre melhor que a chegada.
Até este pelos arrozais, mesmo que daqui a breves minutos leve à a areia a que chamo casa.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Um dia antigo em que me zanguei



Os dias acabam-se quando as portas se fecham com o estrondo. Quando a luz do sol não é forte para chegar ao chão. Os dias acabam-se com palavras premeditadas e egoísmos. Os dias acabam-se com as pessoas que deixam de ver.

As pessoas acabam os dias como quem pisa as formigas, sem as notar no passeio. Hoje talvez matei dez formigas, esquecíveis de sua existência.

Hoje o meu dia acabou cedo, quando me zanguei com o mundo. Uma revolta que nasce de entender que é um privilégio ter um sorriso, não um direito, é um privilégio ser ajudada quando mais preciso, e não ser tomada conta.

Sou mendiga de sorrisos mas mais mendigos aqueles por quem passo todos os dias ignorando. E olho para mim agora e penso quem é esse meu direito de me zangar, se eu mesma tantas vezes poderia ter feito o que não fiz. Viver aqui é entender (e ver) sempre alguém que precisa de ajuda. E quem deveria ajudar. Eu vejo os mendigos debaixo das portas e ponho-os em meus ombros para os voltar a pousar. Apenas lhes senti o peso, apenas isso, agora largar e partir. Decepciono-me comigo por nada poder mais como nada faço sequer. E os sorrisos que dou para que chegam? Aqui sinto que devo andar sempre pedindo desculpa. Desculpa por entrar e falar alto. Desculpa por falar ao telefone com amigo. Desculpa por comprar e quando compro desculpa por pagar o dobro do que sei que isso custa. Este é o prego final. É o andar na rua a ver se se dá e nos tirarem o resto, é o dar esmola e nos roubarem a carteira. O dia chega em que a luz não chega cá abaixo. E a minha alma fica mais perto dos que se sentam nas ombreiras. É o desistir de mudar o mundo, é o desistir de espalhar abraços e eu já nem sei se acordei ou se fechei os olhos. Será que vivi dormindo até agora, até hoje ver a realidade crua sem as cores dos meus pincéis.

E chega o momento que a luz se apaga e eu penso se consigo mais um dia. E eu pego em meus trapos e recomeço sem saber se me matam um bocadinho, se estou a encher uma arca de forças para amanhã. De carácter! Dizem eles, ou de realidade! Eu ainda não sei até quando mudarei o mundo. Cada grito mata 20 sorrisos por favor. Pega nos teus olhos e faz coisas bonitas. Eu aqui vejo mãos largas que tanto dão e umas que não se enchem. E as minhas tão cheias que sabem partilhar. Mas hoje vi as mãos mais pequenas de todas, as tiranas, as que entram nos bolsos e que roubam.

E chega o momento em que escolhemos tentar todos os dias todos os dias mudar o mundo com abraços de novo. Eu fico feliz assim que os tenho, eu fico grata sempre que recebo. Eu fico surpreendida sempre que me conquistam. Gostaria do dia em que seria normal não me surpreender. Ser nosso direito. Eu talvez não possa mais que estas palavras. Mas, a quem as leu, dêem sorrisos por favor. Por todos aqueles que se acabaram hoje por aqui.

domingo, 23 de agosto de 2015

No trilho das cascatas

Esta semana aproveitou-se a ponte e, com mais uns dias de férias, ficámos com nove para seguir a oeste. Que de Budapeste, o fantástico é onde se pode chegar com um dia de viagem, com as suas sete fronteiras e mais alguns vizinhos, temos a Roménia, a Eslovénia, a Eslováquia, a Croácia, Ucrânia, Sérvia, Áustria e ainda, com um pouco mais de vontade, a Polónia, a República Checa, a Bósnia. Destes, escolhemos dois:

Croácia
Ilha de Pag

Croácia porque é Agosto, porque se quer mar e peixe grelhado. Mas atenção, lição número um, a que aprendemos a primeira vez que aqui chegámos de havaianas e páreo ao ombro: não se vai à Croácia fazer praia. Não se esperem areais a perder de vista e ondas azuis : esperem-se pontões de cimento com escadas para o mar, esperem-se praias de calhau roubadas aos rochedos. É preciso aprender primeiro essa lição para a verdadeira Croácia se revelar, um país fantástico onde podemos acordar à beira mar e adormecer no seio de montanhas, um país de rochas escarpadas, cascatas que desafiam a realidade, um país de ilhas remotas, carneiros, pinheiros e cigarras, um país de barcos que transportam para pequenos fins do mundo, baías perdidas, casas cruas da montanha plantadas à beira mar, vilarejos perdidos, água cristalina revelando os peixes, leitão assado, vendedores de queijo e mel, figos maduros, e uma angústia deixada pelas cicatrizes da guerra nos edifícios. Da Croácia gostarei de fugir do que aparece nos catálogos, Dubrovnik, Zadar, eventualmente Split, com seus menus em inglês e vendedores de excursões e bugigangas. Mas irei sempre querer regressar às suas remotas ilhas, à crueza de Senj, ao topo das montanhas, ao vilarejos de Instria, a Rovinj, e às fantásticas cascatas de Plivice, onde o turismo não esmaga os 18 quilómetros de quedas de água e lagoas infindáveis em azul profundo.

Eslovénia
Vale do Soča

Eslovénia no regresso, fazendo fintas aos dias de chuva e continuando a maratona de maravilhas naturais iniciadas na vizinha croata, seguimos para norte, para os Alpes Julianos por estradas corridas a caravanas, antes pausando para uma visita a algumas aldeias que salpicam o topo das montanhas. E são esguias torres de igreja combatendo a altura dos telhados mas inúteis perante a imensidão das montanhas. Pausamos para visitar as fantásticas grutas de Skocjan com as suas abóbadas de catedral e fossos infinitos onde correm rios e cascatas, para se abrir em gargantas que racham a meio a floresta, e daqui para a frente serão só cascatas, todos os dias, cascatas desaguando no fantástico rio Soča, o rio esmeralda. Aqui, no Vale do Soča, ficamos três dias, quando apenas tínhamos planeado um. Há demasiado para ver, um camping perfeito (camping Lazar) onde sempre ardem fornos de lenha que durante o dia assam delicioso cabrito e durante a noite amansam as frias noites dos Alpes. Há caminhadas inevitáveis, trincheiras da primeira grande guerra, há pontes suspensas, há rafting, há florestas como em fábulas, há pequenas praias onde se apanha sol e se refresca na água pura, a 15 graus. E com a calma de aqui ficar, deixamos algo para as próximas visitas: o lago Bohinj, outros caminhos pelas montanhas, ou até este mesmo lugar. Porque a Eslovénia, "Suíça dos Bálcãs", maravilhosa, inexplorada, de gentes simpáticas, merece sempre mais uma visita.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Despertar


Ela seguia o passeio à minha frente. Saia plissada do vestido branco de renda, losangos florais recortados pela cor da pele deixada transparecer, cabelo loiro ondulando as costas. Ela seguia e na mão um saco de plástico contendo ameixas negro-púrpura, nectarinas em degradé amarelo e vermelho como um pôr-do-sol e não lhe vejo a cara, vejo apenas a figura quase infantil, a figura quase etérea de tão clara como o vestido, a exuberância dos frutos abafados pelo saco. 
E passo assim a entendê-la como mensageira de outras realidades, imaginando-a a caminhar entre chorões, a renda do vestido replicada nas sombras das árvores, a abrir trilhos de imaginação. Muitas vezes vejo as pessoas assim, construindo-lhes adereços, talvez tivessem nascido noutra época, noutro lugar, algures perdidos nas montanhas, algures empanturrando banquetes, algures pescando em alto mar.
A figura desaparece na porta giratória para reaparecer do lado de dentro do edifício, picando a entrada com o cartão magnético, entrando em elevadores. 
E lembro-me que estou no escritório, que são 9 horas, que tenho uma cadeira de napa, que tenho um registo de tarefas.
Então não sei se desperto de um sonho, ou se irei agora adormecer por oito horas.

Ao som de: King Creosote - One floor down

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Chuva


Olho pela janela e não sinto saudades, somente angústia.
A angústia que sempre morará comigo
A angústia maravilhosa.
Desenho um mundo por cima deste
Como as nuvens que nos sobrevoam
Sobre mim flutua essa vida
Repleta de sonhos impossíveis
Olho pela janela e a chuva
Que molha as casas molha a minha pele
Nessa alta onde habito. Sem ela
A cá de baixo seria o deserto
Sem a sombra e a chuva das encantadas
A minha jornada seria sem água.
Assim, quando estou cansada olho para cima
E imagino as formas do meu céu desenhado
O meu céu apaixonado e vejo
Eu vejo, eu vejo, eu vejo,
Inexplicavelmente vejo e sinto amor
Pelo belo
O impossível
O distorcido o surreal
Tenho uma tangerina na secretária, poderia passar o dia a amá-la.
A sua casca cheirosa, a folha verde,
Ontem fui comprar cerejas, eram negras como a noite.
No caminho vi a fonte e molhei os pés e os reflexos
levaram-me em viagens para o mar
Depois tentei recordar todos os olhares
e lá em cima as minhas nuvens crescendo
crescendo
crescendo
as emoções evaporadas.
E depois choveu.
Mansamente
Cá em baixo.
Os meus campos verdes.
Vão viver mais amanhã.


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Portugal


Beldroegas, massacote, feijão-verde, snack-bar, entremeada, marmelada, figueira, laranja (do Algarve!), merenda, amolador, vinho verde, vinho à pressão, meio jarrinho?, linguiça, padaria, torresmos, pão de torresmos, papo-seco, broa, codornizes, amêijoa, lamejinha, lapa, conquilha, berbigão, salmonete, coentro-espigado, hortelã, caracóis, alcagoitas, rissolinho, pastelinho de bacalhau, carapauzinhos fritos com arroz de tomate, ai estão bons, atão vizinha, havia eu de servir se não estivessem bons, lagar, vagar, vinha, canário, tremoço, alguidar, alcofa, morcela, carqueja, traquitana, anedota, maré, que às oito vaza, para apanhar mexilhão, digestão, calhauzinhos, cal, sombra, cortiça, arrozal, salina, alforreca, cegonha, andorinha, gaivota, moliceiro, falua, barca, barcaça, barco, barco, barcos atracados nos cabelos, corações que são âncoras enterradas aqui, no lodo dos estuários e das comportas, ferro fundido em areia, cordas que jamais serão içadas, nem depois dos dias e destas todas palavras.

Conversa


ela: Olha no outro dia disse, vamos lá, e fomos! Nem te digo nem te conto. Para entrada pedimos camarão de Espinho. É que é melhor que o de Espinho! Cheios de ovas. Depois sabes o que é que pedi para acompanhar? Um copo de vinho branco, sabes o que é que me serviram? D. Ermelinda, reserva. Sabia a amêndoas. É assim que gosto dos vinhos, secos, a saber a amêndoas. E as gambas? À guilho. Gordas... Estalavam na boca! Tudo bom!
ele: até os tremoços eram bons!

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Pazes

Fonte "Cabanas do rio"

"Quando nos zangamos com as pessoas
É preciso fazer as pazes com as paisagens."

Casa fica antes de abrir os olhos de madrugada.
É o sol que a pálpebra fechada deixa trespassar.
É o primeiro instinto que nos diz onde estamos.
Casa é pisar o chão descalço.
É entardecer sem promessas
Porque nada mais faz falta.
A casa chama, quando se está longe
É a lágrima que cai a garganta apertada
Casa é um abraço dado pelo sol
Casa é areia quente e giestas
Casa é voltar sempre voltar
Casa é uma e une sempre
A primeira de todas as casas
A branca casa
A luz da manhã que sabemos de cor
Os sons mudos da paisagem
A que nos fala baixinho ao ouvido
E murmura “está tudo bem”
Um mantra de repetições que oramos em segredo
A casa é a pele que se lembra do toque
Da madeira, dos móveis, da parede.
Debaixo dela, no alvo coração
Dentro das artérias
Chamará para sempre.
Casa
Casa
Casa.

sábado, 23 de maio de 2015

Salento


Dicas para viagens em Puglia:
- Só e somente se fala italiano (é tentar aquela língua inventada misturando todas as línguas latinas)
- Está mais distante do resto do mundo que a geografia indica, ser portuguesa pareceu-me exótico.
- Nas cidades, se o lugar de estacionamento está livre, é porque há um motivo.
- É bom perguntar, toda a gente tem um amigo que faz qualquer coisa que precisas, ou que está disposta a ajudar, ou sabe onde é que se come bem. Os mapas não são tudo.


Salento. Sol, sal, vento, lento. Daqui conhecia-lhe a tarantella, dançada e gritada até à madrugada, numa noite em Celorico da Beira. O resto era imaginação, aquele fascínio de chegar ao fim. O fim de Itália, o fim da terra, os fins do mundo que coleciono. Finisterre envolta em nevoeiro, Sagres e as sua escarpada garganta, cortante como o mar negro. o fim da Albânia, depois das montanhas, que guarda o melhor segredo para os aventureiros. Lugares mágicos onde as últimas rochas enfrentam as primeiras ondas. Nomes místicos e murmurantes, desertos de pó, estradas vazias e horizontes, a essência singular de um lugar que já não nos pertence, que é dos monstros, dos deuses, dos heróis.
E assim seria chegar ao local que imaginei encontrar habitado por grandes homens cantantes de túnica branca e pandeiretas, e nele encontrar uma singela capela coberta de maresia e conchas. Um farol solitário, uma cascata monumentalle, artificial celebração deste ponto, tentativa de conceder ao local o dramatismo inexistente, passando ela a carregar um dramatismo decadente, o de estar fora funcionamento a expor as suas pedras escurecidas, os seus buracos e tubagens.
Mas de Salento, e de Apúlia, afinal, provámos algo diferente do que antes esperei. Do que o tempo e as surpresas permitiram, ficam as ruas murmurantes de Bari com as suas portas-cortina, que separam, ou deixam de separar a vida de dentro da vida de fora. Ficam cartões postal de furgonetas e lambretas conduzidas de mil maneiras por homens de fato nos olivais, ficam os pombos de Torre dell'orso, que um dia se abriu finalmente em azul como o sol, ficam os pombos promovidos a ave marinha, promovidos a gaivota, a viver nos penhascos, a voar sobre o mar, a nidificar nos rochedos, pequenas grutas nos rochedos, como as grandes que vimos antes na magnífica Matera, onde viviam pessoas desta vez, homens vivendo como animais, animais vivendo com os homens, todos promovidos a seres do mar, os voos picados das andorinhas ameaçando embater o asfalto, sempre a brincar com os medos, ficam os vilarejos mais ou menos intactos, os buracos das estradas e dos passeios, as giestas que crescem livres, o cheiro a jasmim, e finalmente, a placidez de segunda-feira de Conversamo com orquestras e velhos debaixo de árvores centenárias.
Mas partimos. 
Sabendo que de Salento só provámos a pequena parte, porque aqui, para conhecer é preciso perguntar às pessoas e mudar os olhos, é preciso o tempo e o vagar dos velhos que se sentam olhando os pomares, e nós chegámos com os dias apressados da cidade.
Mas, se um dia sentir saudades de Salento, do perfil de seus pinheiros mansos, das suas vilas históricas, das suas estradas delgadas entre as oliveiras, dos campos amarelos estalando ao sol, de todas as casas viradas para ao mar, sei que não tardarei a encontrar igual conforto em cada recanto de Portugal.

Ao som de: Officina Zoe Pizzicarealla

Junho



No fundo dos prantos
Debaixo dos mantos
Lisboa chama-me de voz mansinha

Com patas de gato
Do sol e do mato
Lisboa vem, feita andorinha

Eu quero morrer nas tuas sombras, Lisboa
São sombras quentes de pinheiro manso
E acordar ao sol feita sardinheira.

Em pátios onde as cores nascem diferentes
Ando eu pelo mundo e já não sou tua
Mas tu vais chamando, e por cada rua
Crescem em mim as tuas sementes.

E eu já não sei quanto mais consigo
Até voltar a abraçar teu abrigo. 

Por enquanto, trago-te comigo.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Fotografias



Um dia acordei e não me chegava
As ruas os arcos as tardes abertas 
Um dia acordei e voltei e precisar 
de sonhar alto
De pensar nos dias que se seguem
A este, quente e moreno.

Esta intermitência de mim que não entendo
Este meu ser em estações 
Pois é quando o sol sai alto que recolho.
E na minha cabeça habitam fotografias
Penduradas em fios de seda
Agitadas pelo vento e vejo
Amarelecidas fotografias
Que ditam o princípio e o fim de tudo
Que puxam pelos sonhos como anzóis em besugos
Fotografias à beira mar de crianças
Madeiras apodrecidas pelo lodo
Casas caiadas e cegonhas

Um dia eu acordei
E não me chegavam as pedras do chão
Precisava de continuar procurando
Por essas fotografias
Em todos os lugares do mundo
Excepto onde foram tiradas.

Um dia acordei e não sei
Se cresci, se me afundei, 
Se procuro, se me perdi.
Eu sou a criança que habita a foto
Que segura as canas que a onda levou
Para com elas desenhar na areia.

Como as canas, transporta-me a corrente 
Por ruas de onde o mar não vi
Mas um dia acordei, e uma voz disse
Procura mais à frente, não estão aqui.


Ao som de: Emilie Lund: Childhood friend

domingo, 3 de maio de 2015

Rovinj



As palavras foram-se embora
Entardeceram, como a plácida poeira.
Adormecendo debaixo de parreiras.
Sob o sol escaldante e a erva seca.

As palavras poisam 
sem a brisa 
E sem as ondas do mar.

Como papagaios em mãos laças
Desistimos de puxar.
E descansamos entre pinheiros.
Damos os dedos, inspiramos.

E da ausência ganhamos o espaço.
E do destino, aceitamos igual
àquele dos dentes de leão.

sábado, 28 de março de 2015

Barcelona


Como gosto de voltar às cidades depois de as ter visitado. Deixo para trás os monumentos e jardins e fica só tempo para as ruas, para as caras, para os sabores. Observo as gentes de Barcelona e procuro padrões. Hoje acordei numa cidade diferente, saio à rua para a reencontrar, como uma amiga.
As pessoas ocupam mais espaço, suas esferas são largas e os espaços intercalam-se, invadem-se. As pessoas entram no meu e eu gosto. Passam-me à frente na fila, convidam-me para um café, elogiam-me a roupa, perguntam o meu nome.
Aqui as ruas são largas e leves e o ar respira-se grande. Surpreendo-me do que tinha saudades e do que não necessito. Aqui o sol entra pelas ruas, bate-me nos olhos. Eu sei que pode ser comum mas lembrem-se, há muitas cidades onde o sol não bate no chão! Fica suspenso alguns andares acima, pelas paredes de betão. Sento-me num degrau para escrever este texto e bebê-lo como quem tem sede. Eu hoje vi uma gaivota. Eu hoje vi uma palmeira. Eu entrei numa mercearia, comprei três tangerinas e ouvi a conversa entre uma senhora chinesa e três indianas, em espanhol - que fazem estudam, as três? E os vossos pais? Eu hoje vi um senhor vestindo trajes do norte de África andando pela rua. Vi uma peixaria cheia de gente. Ando pelas ruas estreitas do bairro do Raval e oiço-lhe os murmúrios, sinto-me perto do chão, perco peso. Há um burburinho de coisas que se transportam, de portas que se abrem, de conversas de esquina, de unhas de cães no asfalto, de rolamentos de skates e trotinetes. Sinto o cheiro de mercearias, de ganza, de padarias, de carne frita. E em cada janela, uma varanda. Em cada varanda, roupa estendida. Como tinha saudades dessa roupa.
É que aqui vive-se para fora. Dá se à rua o que à rua pertence. Partilha-se o indivíduo com o grupo. E janta-se depois da meia noite.
Qual será este espírito que entendo tão bem, que me faz dar por mim a andar pela rua sorrindo, que me faz entender que preciso mais da vida dos outros que pensava. Que preciso tanto de olhar para dentro das casa como de voltar a dormir à minha cama.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Late blues


De volta a casa
De volta a tudo
À paredes brancas e lençóis de algodão
À cama quente ao silêncio de veludo.
À casa que tu és que eu amo.
Eu volto para casa e penso em ti.

Na minha mão um papel um pedaço do que fomos
Num dia em que tudo o que tocava era infinito
E nele continha todas as promessas
Hoje toco e é apenas uma folha de papel
É apenas uma mancha de tinta e cores
Penso no que devo guardar ou deitar fora
Decisões racionais sobre coisas vazias
Que ganham e perdem significado.
E eu, alegre e triste
Em ter pena de ter perdido
Triste dos outros papéis que não acumularei
Com letras e promessas
Tenho pena
Como tenho pena de morrer um dia
E de perder os dias de sol que se seguem
E os risos das pessoas que crescem
Perder a é a nossa constante
Deixar ir é aceitar.

Mas sem isso

Não beberíamos os beijos como se fossem cascatas.
Não saberíamos amar como voam as gaivotas.

Incondicional



Não te esqueças de mim, meu amor,
Não te esqueças. Aqueço-te os pés
E deito-me à lareira meu amor.
Eu deito-me à lareira eu faço a cama
Eu deixo-me à espera à espera que venhas.
Eu deixo-me dormir aos teus pés meu amor
Não te esqueças de me aquecer
Todos os dias meu amor
Eu na cama meu amor
Eu aqui eu fechando
Eu ficando eu amando
Todos os dias, não te esqueças.

terça-feira, 10 de março de 2015

É de manhã




E o dia amanheceu
E abriram-se as janelas
As cortinas, as portas, os portões 
Abriram-se.
Por elas 
Larguei braços cheios de palavras
Larguei amarelo amor
Solestícios de sorrisos
Sim! abriram-se se janelas em quadras
Voaram andorinhas
E foram lençóis chapeando o vento
Foram ondas murmurantes e espuma
E todas as cores do universo
Vindo a minha alma, uma a uma.

O dia amanheceu.
Não como outro dia
Mas sim como o primeiro.
Parindo a alegria.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Chapelaria



Talvez já vos tenha falado desta Budapeste-metamorfose. Como um urso que hiberna no escuro inverno, como um animal pequeno que muda as suas cores com a neve. Talvez até seja tartaruga, que se expande ou recolhe na sua casca.
Eu vou falar de Budapeste-inverno, um lugar povoado de blocos altos de paredes de alvenaria. Abrigos cinzentos e descascados, que no verão vomitam esplanadas e pátios, e no inverno as engolem para as suas catacumbas, ciclicamente. As casas de Budapeste são poderosas, já vos tinha dito. Não são os jardins nem as fontes, nem as largas ruas, nem os passeios largos e inóspitos. São as casas: o centro de tudo. A casa de Peste é um edifício de 4 ou 5 andares, cave de tectos baixos e arcadas, pé direito alto, massivas entradas, grandiosas escadarias e pátios silenciados rodeados de varandas que dão acesso às portas. Portas que se atravessam, que levam a muitos lugares. Podem ser casas somente, ou então, estúdios, pequenas escolas, podem ser bares, lojas, oficinas, bibliotecas ou clubes de jazz, antigos centros de espionagem, prisões, abrigos. Eu sei que todas as cidades têm casas. Mas Budapeste segue uma dinâmica ancestral, labiríntica, secreta. Um emaranhado de segredos que permanecem pelos séculos. Estantes sobre paredes sobre esculturas sobre frescos. Histórias acumuladas em camadas como a tinta e o papel de parede.

Na rua que liga Astoria a Blaha Luzja há vários lugares que me intrigam e inspiram. Naquele dia não foi o maravilhoso cinema Uránia com os seus tectos de ouro, nem foi a associação cultural Múszi no topo de um centro comercial semi-abandonado, ou os quadrados de bronze inscritos no pavimento, indicando os nomes e as mortes que ali aconteceram, na segunda grande guerra. Naquele dia o que nos intrigou foi uma das muitas montras sem loja de Budapeste. É que por vezes se vêm vitrinas nos edifícios com alguns produtos e um papel indicando um andar e campainha. É preciso procurar dentro das casas pelos proprietários destas montras, normalmente pertencendo aos artesãos, alfaiates, sapateiros. Esta pertencia a um chapeleiro, chapéus de inverno em pêlo para finas senhoras.
Tivémos de subir a um primeiro andar por escuras escadas para descobrir, ao final de um corredor, a loja que já existe, imutável, desde os anos quarenta. Uma das muitas cápsulas do tempo da cidade. 
A senhora mostrou-nos, orgulhosa, o espaço. A oficina onde o marido estende as peles e coze os chapéus, mostrou-nos as máquinas e os moldes. E nós tirámos fotos, agradecemos, prometemos contar a história e aqui o faço. História do lugar que o seu pai começou um dia, antes de Budapeste pertencer aos alemães antes de Budapeste pertencer aos soviéticos, antes, quando as finas senhoras que ontem eram meninas de caracóis armados e ganchos aqui vinham comprar estes mesmos acessórios para combinar com o vestido de cetim, o casaco de fazenda e os botins, que ainda hoje aqui podem voltar e repetir os mesmos rituais, e sair para a rua como têm saído em todas as suas décadas. E agora eu sei porque continuam a vestir o mesmo vestido de cetim, o mesmo colar de pérolas, o mesmo chapéu de pêlo de zebelina e pregadeira na lapela. Eu vejo-as no metro de baton e risco nos olhos, nos seus oitentas, prolongando a aristocracia que Budapeste um dia haveria de ter contida em todas as esquinas, e que se foi perdendo com o mesmo vagar com que a fuligem se depositou sobre as paredes. Eu vejo-as e sei agora onde foram comprar o chapéu. Tal como adivinho, por cada vitrine que passo, o existe por trás daquele espacinho. É só vir a curiosidade e tocar a mais uma campainha. É preciso vir para abrir mais uma porta, visitar mais uma divisão desta cidade que se guarda, mas se nos mostra, se lhe pedirmos.













Das não ditas


Os silêncios são onde existem as vozes:
Espaços brancos cheios de vazios.
As conversas dizem-se mudas
Pelos dedos.

Eu sei, eu sou das palavras não ditas
De um limbo flutuante 
Como a geada pairando sobre o estio
Em manhãs azuis

Eu sou das palavras que saem pelas mãos
E não pela boca
Das que não têm tempo, nem voz, nem lugar
Daquelas que entram pelos olhos, e não pelos ouvidos
Palavras-corpo, palavras-casulo
narradas mudas por vozes etéreas
Castelos erigidos em teias de seda
Paixões perdidas, inimaginadas.
O mundo suspenso antes dos suspiros!

Eu pertenço, embriagada.

Porque é no silêncio,
contido de formas caligráficas
Que moram os dragões de escamas douradas.
E as criaturas de corações bordados.
E eu recuso o som como recuso cada ponto final
Eu quero um mundo repleto de expectativa
De coisas por acontecer e de promessas
Eu quero habitar nas casas dos Ós, os pontos dos Ís
Permanecer em eterna possibilidade

Enamorar-me do sonho, 
E não da verdade!


Ao som de: Sidsel Endresen & Bugge Wesseltoft: Birds

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os cântaros não têm mãos


O que faço é mais forte que o que decido.
Sou um acto maior que o que persigo.
Escavo com uma mão procurando água. 
E com a outra afasto as areias.
Sempre foi assim:
Uma mão que ganha
Uma mão que perde.

Sou saco roto não cansado de encher,
Um cântaro transbordante na fonte infinita.
Cá dentro nada mais cabe senão
Deitando fora.
E é isso que faço, deito fora.
Água pura por vezes, deito fora.
Carros e paisagens, deito fora.
Olhos e beijos,
Deito fora.
Abraços ansiados,
Deito fora.
Mãos e corpos nus, deito fora.
Jantares no forno, deito fora.
Fora!

Sou cântaro transbordante
De água puro cheio
Podia fechar a torneira mas continuo
A achar que consigo
Encher-me apenas um pouco mais.

Mas os cântaros não têm mãos.
Assim, 
as torneiras não poderão ser fechadas.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Telhados


Odeceixe

Eu sou coração pulsante e água fresca
Sou telhados de Lisboa na luz dourada das oito horas
Eu sou minha, despertada.
Tenho os pés descalços e uma saia rodada e é Verão
E apaixono-mo pelo rio como pelos poetas
Porque apenas procuro as coisas que reflectem.
Na verdade é por mim que me apaixono
Pelas minhas formas deselegantes e olhar aberto
Apaixono-me pelo meu coração, carente de música
E abraços.
Apaixono-me pelas palavras que despejo e nem sei se são minhas
Ou por passos que um dia darei na areia.
Um dia irei pegar num punhado de areia
E separar os grãos um a um
Para ver a luz que os atravessa
Porque eu sou ingénua como a água que os molha
Repetidamente, em vagas
E não chegarão os dias para as surpresas.
Hoje sou uma menina sentada no telhado
Mãos nos joelhos
E o melhor presente é saber que posso olhar o rio como se fosse a primeira vez
O melhor presente é encontrar quem me lembre
Que cá dentro bate a alma
E os dias são finitos.





quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Debaixo



Debaixo de tudo ficas tu
Meu paciente manto
Tu que cobres todas as minhas coisas
Que tapas do pó e da mágoa
Debaixo de todas as coisas aladas
Ficas tu que me amparas a queda 
Esses braços francos
De força dotados
Gostava de ser pesada e caber contigo
Mas tenho que pedir que me abras a porta 
De manhã e ao regresso
Entre voos de andorinha.

Obrigada



Fui permitida ser
Permitida
Quisera ser antes somente eu
Eu ser num lugar cheio e bonito
Numa casa branca de brancos lençóis
Quisera somente eu, e eu era
Era as minhas mãos meus braços minhas pernas
Era o meu corpo e eu contigo
Mas tu vieste e ergueste o espelho
De frente dos meus olhos e eu olhei
Para dentro
Era um espelho pequeno, cabia na mãos
Um espelho pequeno, cabiam os olhos
E em tanto tempo voltei a ver 
Ver para dentro de mim
Voltei a olhar para dentro da íris 
Por detrás do branco do castanho e do negro
Por detrás de tudo estava eu
O meus ser mais íntimo o meu ser imenso
O meu ser esquecido o meu ser inquieto
Eu reflectida
No espelho que trazias em teus dedos
Ou os dedos eram o espelho
Ou tu eras o espelho.
Reflectida
Existi.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Eu já não sei se serei quem de antes era


Dead Combo


"Formoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.


A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.


Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! Quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!


Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Eu já não sei se serei quem de antes era."


de Francisco Rodrigues Lobo, que nele se afogou, a 4 de Novembro de 1621