segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O rio



O rio surge quando não se espera, como parágrafos de paz entre ruínas, surge como um fantasma, como uma neblina, como o um murmúrio, um Rio Branco sem corrente, um rio que repousa, um rio que permanece. E enquanto aqui em cima os sapatos bicudos batem nas pedras, os carris desgastados chiam sob o peso dos elétricos e dos passageiros que os sobrelotam, enquanto os desgraçados gritam pelas ruas e os chamamos loucos, enquanto os estrondos sineiros cortam o céu como machados o rio só, visto das janelas e das esquinas das paredes velhas, rasgadas por pombos sujos, os camiões peganhentos, os sacos rasgados e o rio ileso a tudo, evaporando-se, o rio espelho, rosado, o rio eterno. Antes dos homens, depois dos homens. Depois de todas as tempestades e todas as palavras, permanece, debaixo de tudo o que se desmorona, para replicar, desta cidade, somente a ondulação das roupas nos estendais.


Morar aqui



Aqui a vida cobre-me como um manto, um manto de serenidade, a mesma de quem acorda num domingo e decide não tirar o pijama. A cidade mansa amansa-me, desaparece o cansaço, adormecem problemas e inquietudes, e esta Lisboa não é mais para mim do que sossego. Ando pelas ruas e todas as portas estão abertas, todas as casas têm um rosto, e posso o entrar e perguntar quem é e ali morar um pouco. Moro assim na cidade inteira, moro na travessa do Jordão, moro na Calçada de Santana, moro no claustro da faculdade que já foi mosteiro, e que corre o risco de desabar sobre a cisterna. Moro um pouco nas finanças, onde trabalha uma senhora que também se chama Lígia, moro na casa da minha vizinha de baixo cujo pai é pintor e que antes de residir neste t1 de 35 metros quadrados, vivia numa casa de seis assoalhadas em Algés, mas que eu não me preocupe que vou gostar de estar aqui, moro na casa onde nunca entrei da minha vizinha da frente cheia de gatos mas não dona de nenhum, que fala com eles mais que com as pessoas, que vai todos os dias comer a sua sopa, que custa um euro, no café lá em baixo na mouraria, e o melhor dia é o de sopa de peixe, moro nas escadas da travessa, mesmo aqui nesta rua a cheirar a excremento de cão e febras assadas, com fado gasto ou o Júlio Inglesias a sair sempre da mesma janela, moro no anos 60 que é de um galego e diz que já foi um bordel mas agora está à pinha de uma multidão eclética e suada ao sabor do samba, da morna e do tabaco. E é esta a Lisboa que se repete todos os dias a pé, que se respira sem pressa e com a eternidade de já fazer parte da minha carne, do meu sangue, do meu corpo inteiro.

Ao som de: Sopa da pedra - Ó minha amora madura