quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Lugares-espelho


É preciso viajar para entender que existem lugares pelos quais se sente não somente admiração, mas ainda também uma estranha sensação de pertença: o Alentejo, pela brandura das suas planícies e da sua gente. A Galiza, pelas suas encostas cheias de mar e melancolia. É um aperto no coração, como se uma das das nossas raízes tivesse crescido muito debaixo da terra para vir a brotar novamente longe da árvore.

Chamo a estes lugares paisagens-irmãs, ou lugares-espelho. São aqueles onde venho buscar sempre um pouco de mim.


segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Bagan


Que lugar é este que é tão exótico, tão distante, e que no entanto se torna tão meu? Este calor seco que conheço tão bem não é tropical, é o nosso, o das tardes quentes no Alentejo, das nossas estradas poeirentas. Então é este chão, também sei qual é, de areia e barro, então vou transitando pelo sul de Portugal, ora aqui é a serra algarvia, ora ali a planície alentejana, e o rio que corre sem ondas nos grandes espaços abertos e areais, é um espelho do estuário e das praias desertas de casa. De entre os pagodes, feitos em tijolo, quase vislumbro os castelo de Silves. Mas não é só a Portugal que este lugar me leva, o que já é muito porque o torna meu, mas é também a África, a lugares onde nunca estive mas onde o sol se deve deitar da mesma forma, entre a neblina dourada e as copas das árvores. É também à Europa, pois estes pagodes são como catedrais, e ainda, mais que tudo, e acima de tudo, é o fascínio deste lugar impossível, desta humanidade imensa que é capaz de sonhar tão alto e depois construir, e são paredes cheias de desenhos fantásticos, leões, dragões, budas, olhos rasgados, as bocas sorridentes, coisas com mil anos, andávamos nós na idade média, andavam eles aqui a desenhar nuvens nas abóbadas, a construir estátuas debaixo de campândulas. É a magia de um lugar que se descobre pelas rodas das bicicletas e das lambretas, na estrada onde turistas e locais estão em pé de igualdade,  onde terra se percorre com toda a liberdade, viajando por caminhos vazios, por searas, por aldeias com casas como enormes caixas de vime, e as pessoas dormem em espreguiçadeiras ou dizem adeus. É um sem fim de visões-postal de uma Ásia que muito sofreu, mas que nunca o deixa transparecer, a julgar pela quantidade infinita de bocas e olhares sorridentes.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Latvija

Agora que o tempo vai apagando o supérfluo, e se me perguntassem como foi aquele lugar, eu enumeraria cinco memórias:



#1 vista da janela: o rio está congelado e abre-se branco defronte da janela da escola. Tudo é alvo, excepto os pequenos círculos negros que o ponteiam. Junto a cada círculo está um homem acocorado. São os pescadores, que pescam a linha por furos na fronteira gelada.

#2 A língua que se ouve parece um feitiço, uma coisa mística, uma ave que voou pela floresta e nos ensinou a língua a dançar: paldias, liepaja, jurmala, kuldiga.

#3 Outra janela, desta vez que se move. Lá fora tudo é branco, tudo adormece, ninguém nem nada se vê, nada se cheira. Tudo se suspende, até o tempo. Tudo é horizontal.

#4 Na rua, junto à estrada: uma rapariga. Pára e, fechando os olhos, vira a cara para o sol. Os raios tímidos iluminam-lhe o rosto. Sorri. Estamos em Maio e chegou a primavera. Provavelmente há mais de seis meses que o sol não lhe sorria de volta.

# 5 A praia fica sempre depois da estrada, depois do pinhal. Por vezes caminhamos muito, mas nunca nos cansamos. Por vezes, dentro do pinhal, ainda há o pântano, ainda há o lago. Chego a esquecer-me de onde estou, e faço muitas pontes com a minha península, no meu país. Quando se chega à praia a areia está rija como betão, por causa do gelo. O mar empurra e cristaliza o gelo nas suas orlas. E tudo é de novo horizontal: o branco da neve: o negro dos limos: o vermelho do mar.